Artigos de Dom Manoel João Francisco Dom Manoel João Francisco - Bispo Emérito

Postado dia 05/04/2016 às 08:40:55

“É preciso obedecer antes a Deus que aos homens”

A primeira leitura que vai ser proclamada nas celebrações do próximo domingo, 3º da Páscoa, foi extraída dos Atos dos Apóstolos. Neste texto encontra-se consignada a resposta de São Pedro e dos demais apóstolos ao sumo sacerdote: “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens”. Esta declaração é de grande importância para a fé cristã, pois diz respeito à relação do cristão com a autoridade constituída.  Neste caso concreto, as ordens das autoridades judaicas, não só podiam ser desrespeitadas, mas, de fato, não deviam ser acatadas, pois estavam diametralmente em contraste com a vontade de Deus que lhes tinha mandado pregar e testemunhar a morte e a ressurreição de seu Filho, Jesus Cristo. Temos aqui uma das primeiras manifestações do direito à objeção de consciência. Em outras palavras, a obediência à autoridade humana não pode ser absolutizada. Existe uma instancia superior – Deus – que relativiza qualquer determinação humana.

 Nas civilizações anteriores ao cristianismo, a objeção de consciência era um conceito desconhecido. Foram os escritos cristãos que permitiram a reflexão e a defesa de uma possível contestação à autoridade, tendo como referência última a própria consciência. O processo foi demorado, custou o martírio de muita gente, mas foi conquistado.

O conceito – objeção de consciência - foi elaborado filosoficamente somente no século XVI por Erasmo de Roterdã. Em 1647, houve na Inglaterra uma tentativa frustrada para que a objeção de consciência fosse reconhecida por lei. Cento e cinqüenta anos depois, durante a Revolução Francesa, este objetivo foi alcançado. Nos Estados Unidos, em 1776, a objeção de consciência foi reconhecida pela Constituição da Pensilvânia. Porém, somente em 1917 foi estendida para todos os estados norte-americanos. No século XIX, vários autores reafirmaram a sua importância e pediram para que os países a contemplassem em suas leis. Mas, apenas no século XX é que se tornou realidade, graças à ação de Gandhi. Este homem profundamente religioso e com uma consciência política muito aguçada pode ser considerado o “apóstolo da objeção da consciência”. Ele se opôs de forma progressiva e sistemática a todos os símbolos de opressão, discriminação e violência. Outro grande propagador da objeção de consciência foi Martin Luther King que defendeu do preconceito e da discriminação os negros, minoria racial nos Estados Unidos.

Nossa Igreja sempre ensinou que é legítimo resistir à autoridade, caso viole grave e repetidamente os princípios do direito natural. Santo Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século XIII, por exemplo, escreveu: “só se deve obedecer... na medida em que a ordem da justiça assim o exija”.  O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, clareando esta afirmação de São Tomás de Aquino assim se expressa: “O cidadão não está obrigado em consciência a seguir as prescrições das autoridades civis, se são contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho. As leis injustas põem os homens moralmente retos diante de dramáticos problemas de consciência: quando são chamados a colaborar em ações moralmente más, têm a obrigação de recusar-se. Além de ser um dever moral, esta recusa é também um direito humano basilar que, precisamente porque tal, a própria lei civil deve reconhecer e proteger.

Na força desta doutrina, o Beato Oscar Romero, quando arcebispo de El Salvador, numa de suas homilias, conclamou os soldados à desobediência civil. Disse ele, naquela oportunidade, véspera de seu assassinato:

 “Gostaria de fazer uma chamada, de maneira especial, aos homens do exército, concretamente às bases da guarda nacional, da polícia, dos quartéis.

Vocês são irmãos, são de nosso próprio povo, matam a seus próprios irmãos camponeses. Porém, diante de uma ordem de matar que um ser humano dê, deve prevalecer a lei de Deus, que diz: NÃO MATAR. Nenhum soldado está obrigado a obedecer a uma ordem contra a lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem de cumpri-la. Já é tempo de recuperarem sua consciência e obedecerem antes à sua consciência do que à ordem do pecado. A Igreja defensora dos direitos de Deus, da lei de Deus, da dignidade humana, não pode ficar calada diante de tanta abominação. Queremos que o governo leve a sério que de nada servem as reformas se estão manchadas com tanto sangue. Em nome de Deus, pois, e em nome deste povo sofrido, cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, suplico-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes: PAREM A REPRESSÃO”.


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